quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Little Boy.

 



- Foi assim mesmo- disse o enfermeiro- sem parágrafos. Insano como se esperava, mas não dá pra negar, doutor, faz sentido de alguma forma.

O doutor lia e balançava a cabeça pensativo ao concordar. Tudo estava registrado em três fotografias. Uma prova irrelevante para a Justiça. Mas só entre os dois, a explicação para tudo. Toda a tragédia.

O enfermeiro fizera questão de que tudo estivesse legível ao fotografar o texto na parede do quarto do rapaz, pois sabia que estava tudo ligado. O texto, as atitudes. Um rapaz que conseguiu mudar muita coisa, embora tenha feito pelos meios mais errados. Pela primeira vez, em quinze anos de profissão, o doutor pensava agora se não dera um diagnóstico incorreto.

- Encontrou mais alguma coisa lá?- perguntou após um suspiro cansado. Foram dois dias estafantes. Corridos. Estava todo mundo cansado. Ele via no rosto do enfermeiro a vontade de fazer algo mais, mas o melhor mesmo seria descansar. Não havia mais nada que se pudesse fazer. Apocalipse é apocalipse. Ponto.

- Não, doutor. - respondeu o enfermeiro. - Nada mais que a polícia ou qualquer um de nós já não tenha visto.

O doutor balançou a cabeça mais uma vez. Os dois fizeram um longo silêncio. O enfermeiro apanhou da mesa as fotos mais uma vez. Olhou-as com cuidado. Leu o texto inteiro novamente.

- Anarquista... - sussurrou.

Com a cabeça apoiada na mão, o doutor que se balançava de um lado para outro na cadeira jogou sobre ele um olhar inquisitivo.

- Isso aqui é anarquismo puro, doutor. - disse o enfermeiro ao perceber a dúvida no olhar do outro. – Quer dizer... aposto que sei o que o senhor está pensando agora. Mas não tinha como a gente saber. O senhor não errou. Ele só não devia estar aqui. Como nenhum dos outros. O lugar deles não é aqui. Não importa o que ele tenha feito. Esse lugar não é adequado pro que a gente tá tentando fazer.

- É mesmo... - anuiu o doutor num tom cansado. - É mesmo.

O enfermeiro colocou de volta as fotos sobre a mesa do doutor. Recostou-se por um momento apenas para conferir se ele estava realmente bem. Viu um semblante tomado pela culpa. Para essa doença não havia remédio algum. E até inventarem a máquina do tempo, continuaria assim.Bateu as mãos nos braços da cadeira e levantou-se num movimento rápido.

- Bem, acho que já vou, doutor. Se precisar de alguma coisa... Alguém pra conversar. Pode ligar. Moro no São Cristóvão. Minha esposa disse que está tudo bem por lá. Ninguém foi atingido na periferia. Se quiser um lugar mais tranquilo pra dormir...

- Ok, obrigado mesmo. - disse o doutor. - Também vou pra casa. Estou quebrado. Por dentro e por fora. Bem que eu gostaria de ter uma esposa me esperando. Sã e salva. – disse por fim com um risinho insosso.

O enfermeiro não conseguiu depurar a comiseração do olhar que lançou para o amigo. Virou-se e saiu.

- Você poderia dizer agora. - disse o doutor antes que o enfermeiro fechasse a porta.
- Hã? – disse o enfermeiro colocando apenas metade do corpo de volta.
- Você disse que passaria na minha cara meu erro. Estava certo o tempo todo. Eu lhe devo desculpas.
- Não pense nisso. Como eu disse, não tinha como saber. Eu segui minha intuição apenas. Somos profissionais da saúde. Trabalhamos com evidências, não com intuição. Eu só estava nervoso, não faria isso jamais.

Os dois estavam sendo sinceros e percebiam isso em seus olhares e palavras.

- Eu sei... - disse o doutor- eu sei.

O outro fez um sorriso com o canto da boca. Daquele tipo que sai com o maior esforço em situações que pedem um sorriso justamente quando não há força nem motivo para tal. Pelo enfermeiro ter conseguido dando seu máximo, o doutor agradeceu. Mas sabia que o amigo estava sendo apenas generoso.

Quando a porta se fechou, o doutor levantou-se e olhou as fotos sobre a mesa. Afastou as três que foram trazidas pelo enfermeiro. Três fotografias que eram partes complementares de um texto escrito na parede com giz de cera molhado. Abaixo delas estavam outras. As que deveria entregar à polícia. Roupas de funcionários do hospital jogadas num canto de parede da ala norte. Portões do corredor arrebentados pelo lado de fora. As provas de que o paciente havia recebido ajuda de pessoas externas à equipe. Os donos dos uniformes foram encontrados amarrados no canteiro de obras ao lado do hospital. Na verdade um terreno cheio de entulho que o governo se comprometeu a retirar, mas nem isso nem as obras haviam começado em dois anos e os pacientes continuavam apertados em quartos pequenos, mal iluminados e com paredes sujas. Quartos como o do paciente em questão.

Quando chegou ao hospital, a única pessoa com quem o rapaz conseguia se comunicar era com o enfermeiro. Recusava-se a dizer sequer uma palavra a médicos, técnicos ou qualquer outro funcionário. De alguma forma percebia nele a capacidade de entender coisas que deveriam ser ditas a um número maior de pessoas. E não era para menos. “Anarquista”. Sim, o enfermeiro entendia. Havia diálogo ali. Pena que o doutor não deu ouvidos quando o enfermeiro avisou que aquele paciente era diferente. Inteligente demais. De família rica. Típico caso de jovem revoltado que desafia o pai empresário e acaba no hospital psiquiátrico. “Drogas demais”, alegou o segurança do pai quando o veio internar. Estava muito agitado. “Precisa de uma camisa de força!”, disse o brutamonte. O enfermeiro pôs isso no prontuário também.

Dois meses de internação. Não era violento, muito pelo contrário. Parecia completamente normal. Mas aquele olhar. Não era dissimulação, nem ódio, nem loucura. Era um misto de tudo isso. Demorou em entender da forma mais dura que o nome daquilo era obstinação. Tomava normalmente os medicamentos. Até entendia deles. Tranquilizantes e moderadores do humor. Participava das terapias de grupo. Fazia os passarinhos de papel da terapia ocupacional e conversava com os outros pacientes, os mais e os menos normais com a mesma paciência e respeito. E escrevia. Muito. Dia e noite em um bloquinho de notas que sumiu junto com ele.

“Ele precisa ir para outro lugar.” Dizia o enfermeiro. “Alguma coisa é verdade ali. Ele não fez o que fez num delírio”.  Mas o doutor insistira no diagnóstico. Abriu o prontuário que jazia junto às fotos e leu sua parte das anotações:

Código de Classificação de Doenças F 20.0: Esquizofrenia Paranoide. Sintomas produtivos: alucinações visuais e auditivas. Mania de perseguição. Imagina fazer parte de um grupo revolucionário que tem como objetivo iniciar uma nova sociedade. Comunicação seletiva. Sintomas depressivos. Agressividade esporádica. Internado pelos próprios familiares após roubar grande soma em dólares do próprio pai. Registros encontrados no quarto do paciente revelam que o objetivo do roubo seria a compra de artefatos nucleares por meio de contatos com grupos fundamentalistas muçulmanos no Oriente Médio. Soma subtraída conduzida a paradeiro ainda não identificado.

Fechou o prontuário e jogou-o sobre a mesa. Apanhou as três fotos do texto da parede e pregou-as com tachinhas no flanelógrafo atrás da mesa na ordem em que se seguia o escrito. Aquele texto lhe condenava secretamente. Mas tinha a certeza de que condenava a todos. Todos mesmo, toda a Humanidade. Desde o início dos tempos. Desde que o Homem é capaz de registrar seus feitos. Desde que é capaz de sobrepor sua dominação à natureza e a seus semelhantes mais fracos.

Foto 1:
“Eu não posso dizer o que vem depois, mas antes de melhorar, a coisa vai piorar muito. E esta não é uma perspectiva pessimista. Muito pelo contrário. A força destruidora é também uma força criadora. É necessário que se desfaça tudo que está aí. A política, o modo como os poderosos mantêm a estrutura parasitária da sociedade sustentada pelo trabalho da maioria mais pobre e desprovida. Não haverá perfeição. A Humanidade dificilmente verá uma forma de organização na qual o respeito e a compreensão completa predominem nas relações entre as pessoas. A minha ideia é que isso possa se concretizar em pequenos grupos que estabeleçam o compromisso de manterem-se íntegros em si e não se agridam mutuamente. Parece uma organização tribal, o que dá a ideia de que a paz verdadeira somente poderá ser alcançada quando a Humanidade assumir que o progresso tecnológico precise sofrer uma desaceleração de radical severidade.”

Foto 2:
“É exatamente isso. O progresso científico avança em uma velocidade vertiginosa. Quase não percebemos a relevância de uma descoberta ou invenção antes que a próxima seja anunciada. Nesse sentido, é necessário que haja a consciência coletiva de que já possuímos considerável nível de desenvolvimento e que devemos adotar uma postura mais reflexiva, concentrando esforços na organização social, de modo a que possamos direcionar as formas de avanço tecnológico de maneira mais lúcida e integrada, em que todas as pessoas tenham conhecimento e acesso ao recurso criado e possam contribuir para que ele possa ser posto em prática a fim de produzir um benefício que alcance cada membro da coletividade. Pequenos grupos. A evolução da Humanidade não é baseada na capacidade orgânica de resistir a uma condição ambiental adversa.”

Foto 3:
“Mas sim baseada na capacidade de manter um status pacífico em uma organização igualitária na qual cada pessoa é provida dos recursos necessários à sua subsistência, lazer, satisfação intelectual e espiritual, com liberdade para produzir e expressar ideias e que estejam em total e voluntária comunhão com o grupo, senão voluntariamente, sozinho, mas que não haja qualquer autoridade, a não ser sua própria compreensão, que possa regular ou definir sua conduta e suas escolhas. Essa capacidade, aliada à vontade de relacionar-se de forma sustentável com a Natureza definiria um novo Ser Humano. Não posso dizer o que vem depois. Mas o que vier tem início hoje. Ass.: Little Boy”.

Deveria ter ouvido melhor o amigo. Deveria ter ouvido melhor seu paciente. Grande médico. Logicamente ninguém colocaria a culpa nele. Sua carreira estava intacta. A cidade não. Longe disso. O rapaz fora resgatado do hospital. Seu diagnóstico equivocado não determinava que um dia os amigos “imaginários” dele fossem render funcionários do hospital e retirá-lo de lá como se faz com traficantes em delegacias. Não era culpa de ninguém. Essa era a versão oficial. Mas a versão de sua consciência o condenava. O Centro de Fortaleza e todos os bairros ao redor foram varridos do mapa por uma bomba nuclear de fabricação artesanal. 22 mil pessoas mortas em segundos. 120 mil pessoas feridas pela onda térmica. Uma nuvem radioativa se espalhava naquele momento por todo o Ceará e oceano afora. O pulso eletromagnético colocava em pane a comunicação à distância.

Não era culpa de ninguém. Mas o rapaz tinha razão. Era culpa de todo mundo. Pensando nessas coisas o doutor deixou-se cair novamente na cadeira. Olhou as fotos no quadro. Depois baixou a cabeça e chorou. Apocalipse é apocalipse. Ponto.




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