Lembro os anos
sessenta quando eu ouvia Buddy Holly desde a hora de acordar até o almoço.
Depois de comer,
punha uma camiseta, meus óculos de armação grossa e caminhava um pouco debaixo
do sol quente até a banca do Alfredo para trocar figurinhas de alienígenas.
Comprava alguns exemplares antigos de gibis do Superman e voltava pra casa. Me
trancava no quarto, colocava um pouco de Elvis na vitrola e ia escrever
histórias de ficção científica para passar o tempo.
À medida que a
tarde passava, saia Elvis, entravam Troggs, Beattles, Kinks, Animals. E eu
amava Bob Dylan apesar de ser só um cara com um violão e uma voz anasalada, na
época muito estranho pra caras como eu. Mas o fato dele falar coisas que eu
realmente achava importante me dava a impressão de que pelo menos uma pessoa
nesse mundo tava realmente afim de simplificar as coisas pra mim, ao invés do
contrário.
De tarde eu tomava
um banho, vestia uma calça de brim, uma camisa branca por dentro, meu cinto de
fivela dourada, sapatos bem engraxados, colocava meu chapéu preto meio que de
lado e ia à praça conversar com outros cavalheiros que, como eu, não viam
problema nenhum em tomar uma cervejinha, conversar sobre rock´n´roll, filme de
terror e atrizes gostosas como Brigitte Bardot.
À noite, sempre
tinha festa na casa de alguém. Havia uma loira de nome Glória. Nunca chegamos a
ficar juntos, mas sei que ela tinha uma queda por mim, pois sempre estávamos a
trocar olhares e ela sempre sorriu pra mim. A possibilidade de dançarmos era o
que tornava aquelas noites mágicas. Um dia, consegui chamá-la para uma dança.
Ela era daquelas menininhas de beleza inocente que sempre está acompanhada de
suas amigas, com seu risinho tímido e meigo, de voz suave e um perfume natural
e inebriante que me deixava sonhando por semanas. Eu era um garoto meio
desbocado que as mães das meninas detestavam e com quem as proibiam de falar,
mas com quem elas não conseguiam deixar de falar. Daqueles que causam problemas
de verdade e acham muito divertido ver o circo pegar fogo.
Tudo isso fazia
daquele um tempo muito bom. Me lembro de como sempre achava que estava vivendo
na época certa, apesar de toda a porcaria pela qual o mundo estava passando.
Uma guerra falsa que era uma ameaça verdadeira, os preconceitos e a repressão.
De certa forma, até aquela tensão toda era boa. Era bom ser jovem e esperto o
bastante para saber e ter consciência de tudo e mesmo assim não ligar pra nada
a não ser música, cinema, mulher e confusão.
Eu amei minha
juventude.
Só que há um
problema: nada disso aconteceu. Eu não sou esse cara. Nem sei de onde ele saiu.
Faz tempo que ele mora em mim, acho que ainda era garoto quando ele surgiu.
Tenho uma saudade imensa desse tempo, a ponto de chorar algumas vezes, vendo as
fotos de todas as pessoas com quem eu andava, lendo cartas delas, falando com
uma ou outra ao telefone sobre aquelas aventuras...mas nada disso existiu.
Sinto-me velho como
esse cara seria hoje, mas eu não sou ele. Como posso explicar isso? Não há
outro jeito senão imaginando que esse rapaz é um eu diferente de uma realidade
paralela qualquer, gritando através da sangria cósmica que existem coisas
legais para serem vividas, que eu não sou tão velho quanto o mundo e as
circunstâncias me fazem acreditar que sou e que eu devia jogar algumas coisas
para o alto antes de ser engolido por todo o tempo que não vivi.
Quando paro pra
pensar nos acontecimentos do mundo vejo que nossa época é bem parecida com
aquela. Uma juventude desatenta e inconsequente, uma ameaça nuclear assombrando
os jornais e a esperança invisível de que do nada alguém muito especial apareça
para mudar as coisas. Não sei o quão triste me sinto por quase não me lembrar
de nada do meu próprio passado e sentir tanta falta da vida desse meu eu
alternativo. Acredito que na história jamais houve um tempo em que não se
estivesse em crise. A luta pela sobrevivência nos domina, ofusca nossa
percepção e liquidifica nossas aspirações e sonhos, tudo é sempre uma névoa de
preocupação e o esforço é imenso por construir um amanhã que não deixa de ser
incerto. Quanto mais se pensa, menos se entende como a humanidade caminha.
Mas as coisas estão
mudando. Os tempos estão sempre mudando. O que não muda é o fato de que jamais
saberemos no que tudo vai dar, por mais que queiramos ter o controle de tudo. E
acho que os momentos do passado que nossos “eus alternativos” mais sentem
saudades, nesses tempos obscuros de solidão e loucura, são daquelas noites lindas
em que o espírito ficava leve ao som de músicas de amor e se podia muito bem
flertar com a Glória. Sem culpa alguma, sem qualquer pudor.